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ARTIGOS

Gestão Educacional

Na Contraluz da Escola

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Embora a internet seja uma fonte ilimitada de informações, seu potencial de consolidação de equívocos é inestimável.  Generalizou-­‐se, em crônicas e ensaios disponíveis na rede, a suposta etimologia da palavra “aluno” como “aquele que é desprovido de luz”. Muito longe disso, “aluno” se origina do latim /alumnus/, “afilhado”, derivado de /alere/, “alimentar”, “nutrir”. Preciso e conciso: aluno é aquele que se nutre (de saberes).

Emparelhado naquele equívoco de viés desconstrutor está ainda a redução do termo “escola” a “ócio”. Em nome da clareza e da história, bem como do respeito à admirável gênese desse espaço de busca do conhecimento, é necessário esclarecer que o vocábulo grego /scholé/ inclui o significado de “discussão”, pois que se tratava do lugar onde se discutia durante o tempo de lazer.

Nesse conjunto de etimologia falseada, que mal esconde a pretensão de denunciar uma educação tradicional apartada do século XXI, encontra-­‐se o “professor”, que embora não tenha sido usurpado de sua etimologia — “aquele que professa, que declara publicamente o que sabe” —  tem  sido submetido a uma predicação retórica que reduz sua definição essencial a uma estratégia de atuação,  tais  como  mediação,  motivação  e  monitoria.  A palavra “mediador” tem-­‐se generalizado como substituto da responsabilidade original.

Nos últimos anos, a pedagogia tem-­‐se escorado em algumas falácias que, com propósito de renovar e aprimorar o ensino, denunciam os males de uma escola desmotivadora, que desconsidera o conhecimento do aluno e é conduzida por professores sem competência para preparar o jovem para o futuro.  Trata-­‐se de uma generalização inconsistente — que confunde causa e efeito, continente e conteúdo — e propõe reconstruir o edifício fragilizado da escola com uma reforma superficial do discurso.

Inicialmente, é preciso reconsiderar a premissa fundante de nosso patrimônio civilizatório: o conhecimento. Todos os homens, de todos os tempos, anseiam compreender o mundo em que vivem; como fazem parte desse mundo, aspiram também a compreensão de si mesmos; e a essa busca se agrega ainda o interesse de compreender o próprio conhecimento (de si e do mundo). O deslumbramento com os enigmas do universo, do homem e do próprio conhecimento é atemporal e universal. A ousadia perene de descobrir, que se estende para o devir da condição humana, entretanto, tem uma fonte inesgotável e essencial: a tradição. A maior parte do que sabemos e aprendemos são memórias, vidas, relatos, livros, documentos, exemplos. Sem a tradição, o conhecimento teria que partir do nada, o que parece impossível. Com ela, o homem avança, criticando, descartando e ampliando o que lhe ensinam; o conhecimento avança, questionando, alterando e refazendo-­‐se.

A ideia da escola como um bunker do dogmatismo provavelmente tem origem na consolidação da doutrina aristotélica do conhecimento seguro e demonstrável. Todavia, é preciso restaurar a imagem da escola anterior, pré-­‐socrática, berço da crítica livre, dos debates e da legitimidade da contestação até mesmo ao mestre. A epígrafe de Tales de Mileto (624 a.C. – 543 a.C.) que abre este artigo (a partir da citação e tradução de Karl Popper) expressa esse ideal de escola que jamais se destina por princípio a preservar uma doutrina, mas se dedica a incentivar a mudança, a crítica franca e racional, em uma palavra, a argumentação. A rígida e escola de Pitágoras foi uma exceção entre os contemporâneos da escola jônica e eleática, que tinham consciência de que seus ensinamentos eram conjecturais e se abriam para o diálogo livre entre mestre e discípulo. A atitude crítica dos pré-­‐socráticos anunciou o racionalismo ético de Sócrates, que incorporou à sua vida a convicção de que a verdade temporânea somente poderia ser alcançada por meio de um debate crítico.

Creio que os reformistas do século XXI precisariam abrir mão do que há de doutrinário em suas concepções e investigar a paradoxal tradição do novo que essas escolas gregas inauguraram. Difícil imaginar, hoje, existirem professores que discordem dessa concepção. As dificuldades da escola não se concentram apenas nas salas de aula, nas avaliações e currículos, ou nas falhas dos educadores. Elas se espalham pelo corpo social, compartilham das circunstâncias socioeconômicas e espelham a cultura contemporânea. Essas dificuldades são acirradas pelos valores e discursos que inevitavelmente contaminam a escola com a neutralização da hierarquia necessária ao desempenho das funções educacionais, bem como e principalmente com o desapreço pelo conhecimento e pelo debate.

O aprendizado é, antes de tudo, o exercício de uma forma dinâmica de pensar. Não há dúvida de que temos e mantemos nas escolas — e fora delas — muitos conhecimentos desinteressantes e irrelevantes, tanto quanto inumeráveis conhecimentos férteis e essenciais para a construção de nossa compreensão do mundo e de nosso estar no mundo. Mas é a forma de pensar que constitui a alma desse sereno pessimismo que resulta de nossa afortunada ignorância (“só sei que nada sei”). Ou seja, mesmo conscientes de que, a cada avanço, novos problemas surgem e de que nossas ideias e invenções podem nos surpreender com o erro, mesmo assim continuamos tentando, ávidos pelo campo infinito das soluções em aberto. Esse é o sentido da bela frase de Heráclito que acompanha a epígrafe de Tales. Quem não espera o inesperado se aprisiona em certezas, incapaz de imaginar, provocar e se assustar com a mobilidade do próprio discernimento.

Nossa civilização detém um emocionante acervo de conhecimentos. Quando exploramos o desconhecido que nos rodeia e nos inclui, contamos com as ferramentas consistentes da ciência, da matemática, da história, das linguagens..., mas desconhecemos como evitar o engano. A única forma  de  impedi-­‐lo  seria  paralisar-­‐se  em  doutrinas,  resistindo  perigosamente  à  ousadia  de  ideias novas.

Quando nos dispomos autenticamente a ensinar e aprender, precisamos nos preparar para cometer erros, enfrentá-­‐los e corrigi-­‐los. A resposta para nossa falibilidade e incompletude não está em saber mais, ou em ter mais certezas, mas se encontra no permanente esforço de aprimorar. A profundidade e o conteúdo são mais férteis e necessários do que a certeza, e o argumento crítico é o melhor controle de que dispomos para pensar e reaprender.

Professores e alunos podem tanto vivificar o espaço da escola — inoculando-­‐lhe viço e virtudes

— quanto testemunhar seu silêncio e encolhimento. Estar de um lado ou de outro depende mais das circunstâncias do que da disposição individual. Há indícios de que vivemos um tempo em que se perdeu a vocação para educar, em sentido restrito. O recuo da função de educador é notório e doloroso: caso fosse possível à inteligência artificial se prover de alguma humanidade, uma poderosa porção dos habitantes do planeta respiraria em alívio coletivo.

Um dos índices dessa perda se revela na ressignificação dos vocábulos, conforme já mencionamos. Por que a palavra professor passou a ser rejeitada? Com a imprópria justificativa de que ninguém detém o saber, pois ele é substância que se constrói e desconstrói autonomamente, o professor é apartado da relação sujeito (aluno) /objeto (acervo de informações), passando a adquirir uma função lexical de intermediação. Torna-­‐se um facilitador da relação entre os polos.

A resposta para nossa cognição dinâmica e incompleta não está na supressão do “professar”. O professor professa, sim, dentro dos limites de sua falibilidade. Professa, sem a pretensão de completude e certeza, mas professa, expressa, dialoga, contesta, ouve, aprende. O professor
professa porque é interpretante dos signos da cultura. Suas escolhas — de conteúdo, objeto, ideologia e método — são contingentes e articuladas à sua geração, formação e experiências. Contudo, essas escolhas lhe pertencem e o identificam, constituem seu discurso e seu acerto, seu erro e sua mudança.

Mesmo os recursos das tecnologias de comunicação e informação podem legitimar o professor, em termos epistemológicos e formativos. São exemplo disso as funcionais vídeo-­‐aulas conduzidas online muitas vezes acompanhadas pela voz do professor em off. Todavia, seria ideal se ele pudesse estar, também, do lado de cá da tela, na escola, em meio ao burburinho e à imprevisibilidade da sala de aula. Esses recursos de TI e TC não são autônomos. São máquinas que não funcionam sem o sujeito humano presente capaz de lhes conferir animação. Pela mão dos professores, elas podem constituir-­‐se os   mediadores e facilitadores de fato. Sem essa parceria, projetos políticos de distribuição de computadores e universalização de aplicativos são paliativos. Nem mesmo os livros em papel têm garantia de sucesso na escola, caso não contem com o trabalho do professor em primeiro plano: para ensinar a ler, a ouvir, a debater.

A tendência de apagamento do professor ocorre em contraponto à heroicização do aluno. Com a propagação da mal compreendida “autoconstrução do conhecimento”, criou-­‐se a fantasia do “aluno protagonista”. Ela pode ser um peso — como a dos heróis trágicos destinados a um feito que eles não escolheram — e uma discriminação. A formação de um jovem com base na autonomia não se confunde com a ascensão do jovem a um estado de superioridade a priori. Sem dúvida, o processo cognitivo é, sobretudo, individual e solitário; paralelamente, o conhecimento é interativo, da ordem da cultura, assim como é social a ética e a crítica que gera novos conhecimentos. No romance escolar, há coadjuvantes, antagonistas, obstáculos e peripécias. Há objetos mágicos, como os livros, as tecnologias, os aplicativos; mas não acreditamos em demiurgos nem consideramos benéfica a idealização do jovem aluno.

Em decorrência da referida perda da vocação de educar, à escola são atribuídos cenários e funções estranhos a um espaço de conhecimento. A idealização do aluno, que em seu heroísmo prescinde de professores e orientações, vem acompanhada de uma idealização da infância e adolescência, vistas como idade de ouro. De acordo com essa fantasia, a aprendizagem precisa estar acoplada ao princípio do prazer, à escolha individual, à negação do esforço e da disciplina, à capitania da motivação. Daí deriva o critério infantil de questionamento e escolha (“pra que serve aprender isso?”; “nunca vou usar isso!”), baseado em falsa premissa mercadológica, como se a escola contemporânea devesse ser essencialmente uma feira curricular e os conteúdos a serviço de objetivos externos à sua substância.

Por outro lado, o sentido, o interesse e a graça não são imanentes a determinado tema de estudos; só existem na percepção, na atuação da inteligência humana que descobre o encanto nas profundezas, não no imediato. A epistemofilia é uma condição psíquica precoce, que lança cada criança no universo das perguntas incansáveis. Não se pode esperar que apenas a escola inocule nos alunos a semente da curiosidade e do interesse. Também a ludicidade compõe a estrutura psíquica do homem, mas na escola ela pressupõe o desenvolvimento de padrões intelectuais, sociais e morais. O jogo tem um objetivo pedagógico e formativo, para além do deleite.

A premissa do ensino-­‐aprendizagem articula pensamento e liberdade.  Pensar com liberdade implica ouvir e aprender com vozes dissonantes, já que, em geral, somos tão tolerantes com nossas falhas quanto somos inflexíveis com as dos outros. Implica ouvir e falar, abrindo mão das certezas e opiniões. O diálogo argumentativo crítico gerado nesse princípio movimenta o pensamento em uma direção mais clara, mais coesa e mais próxima da inalcançável escola que imaginamos ter sido a de Tales.

 

Cristiane Conforti é diretora da Avenus e foi palestrante no XVIII Congresso Nacional de Gestão Educacional - GEduc 2019.

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